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Este é o 4º artigo de 23 posts da série Renegada.

 

Sylvana sorriu brevemente. Halie reparou que tinha no olhar aquele brilho que indicava algo especial – provavelmente uma nova ideia polêmica.

– A Ilha de Fenris se posta desafiadora no coração do Lago Lordamere – começou Sylvana num tom distante. – Uma lembrança cruel de um tempo que ficou para trás. Apesar de já não estar infestada de vermes gnolls, uma nova ameaça surgiu. Refugiados humanos, expulsos de suas casas em Eira dos Montes, fugiram para a Ilha de Fenris na esperança de escapar da derrota por nossas mãos. Esse foi um grande erro.

Sylvana fez um aceno e chamou Ágata, que se aproximou imediatamente, envolta em todo seu esplendor mortífero. Halie preferiu não olhá-la – ainda se sentia mal na presença das val’kyren.

Tão absorta estava em sua tentativa de ignorar a presença de Ágata que levou um susto quando Sylvana voltou a falar.

– Halie – continuou a Rainha. – quero que vá com Ágata até a Ilha de Fenris. Massacrem todos os humanos. Ela os ressuscitará e eles se unirão à causa dos Renegados, aumentando nossas forças.

Halie parecia ter perdido a capacidade de falar. Já imaginava que receberia alguma ordem, mas em nenhum momento pensou que teria de fazer aquilo.

A ideia parecia-lhe abominável. Permitiu-se dispor de alguns segundos para refletir. Tinha certeza de que, se pudesse, teria começado a chorar como uma criança desamparada naquele momento. Queria sair correndo, deixar aquele lugar para sempre, voltar para sua casa em Elwynn. Acender uma lareira, comer algo que não parecesse desprezível, banhar-se e arrumar os cabelos. Queria uma roupa limpa, um jantar posto à mesa, um abraço. Naquele momento, queria não ser uma morta-viva.

Mas, a despeito de todas as suas vontades, permaneceu parada. Sylvana e Ágata a encaravam, aguardando alguma manifestação – talvez até começassem a se preocupar com a demora da reação. Halie concordou com um leve movimento da cabeça e, lentamente, deixou-as para trás, absortas com os preparativos da missão. Caminhou normalmente e, assim que pôde, escondeu-se atrás de uma tenda vazia.

Cobriu o rosto com as mãos e escorregou até o chão. Deixou a cabeça pender para trás e assim permaneceu por alguns longos minutos.

Como?, perguntava-se. Não posso fazer isso, não posso, não posso…

Ela sabia como era doloroso o processo de transformação. Fora ressuscitada – hipótese que, por si só, já era assustadora o suficiente. Como se não bastasse, ainda lhe foram impostos um novo corpo, uma nova rotina, um novo líder para seguir incondicionalmente. Era coisa demais.

Agora, no entanto, devia obrigar outras pessoas a passar pela mesma confusão. Halie lembrava-se da maneira distinta com que cada recém-ressuscitado lidava com a notícia – uns saiam correndo, outros caiam em desespero profundo, outros ainda entravam em um estado de negação absoluto.

É só um sonho, Halie recordava-se de ter dito para si mesma diversas vezes. Já vai passar.

Com o tempo, precisou aceitar o fato de que não iria passar. Obrigou-se a aprender a viver de maneira diferente, aprendeu os padrões dos Renegados, deixou-se ficar. Ganhou confiança, ajudou a causa. Agora, estava a ponto de ganhar o reconhecimento absoluto da Rainha Banshee.

Não podia negar a ordem. A única solução que encontrou no momento foi tentar amenizar a culpa gigantesca que sentia antecipadamente.

Preciso pensar como uma Renegada, dizia a si mesma, procurando entender a situação por um ângulo diferente. Não estava funcionando.

Ágata acabou encontrando-a algum tempo depois.

– Halie – chamou em sua voz sombria. – Não devemos deixar a Rainha Banshee esperando.

– Hum – resmungou Halie. – Só estou… pensando.

A val’kyr se aproximou um pouco mais. Halie a encarou e, por um segundo, estudou suas feições glaciais. Teriam também as val’kyren algum passado do qual se lembrar, alguma memória para se agarrar quando as coisas ficam difíceis?

Não, constatou. Elas são feitas de pesadelos.

– Eu era uma humana – disse Halie, pouco importando-se se Ágata podia entende-la. – Exatamente como esses que preciso matar. Não sei bem o que sentir… Devia simplesmente esquecer essa parte, não é? Pensar apenas como uma Renegada. – riu secamente. – Afinal, que opção eu tenho?

– Servir à Rainha é a única opção – respondeu Ágata em seu tom frio.

– E é mesmo, pelo que parece – Halie se levantou. – Acho que um dia eu vou ter que aprender a separar a pessoa que fui um dia da morta-viva que sou agora. Enquanto isso… preciso arranjar coragem para fazer o que me mandam.

Saiu andando pela estrada, já encaminhando-se para a saída das instalações do Alto Comando. Ágata vinha logo atrás, seguindo-a num silêncio sepulcral.  Halie concluiu que preferia que fosse assim – era melhor não conversar do que precisar aguentar as respostas robóticas e frias da val’kyr.

– Por aqui – disse Ágata, caminhando em direção ao Lago.

Halie ficou levemente pasma quando Ágata continuou seu caminho sobre a água. Sobrevoava o Lago lentamente, as asas negras se agitando em movimentos hipnotizantes.

– Venha – gritou.

Halie esticou um pé, cheia de dúvidas. Não sentiu a umidade e arriscou dar um passo. Permaneceu em pé, estática, olhando para baixo, com a sensação de que afundaria a qualquer momento.

Não afundou. Teve de se esforçar para caminhar rápido e alcançar Ágata, ainda meio cambaleante devido à sensação. Assim que pisaram em terra firme, já na Ilha de Fenris, a val’kyr emitiu um som estranho que Halie presumiu ser a sua versão de resmungo.

– O calor desse lugar me enoja – disse.

Halie a ignorou. Quanto mais aproximavam-se do centro da Ilha, onde escondiam-se os refugiados, pior se sentia. Mas nada a abatera tanto como os olhares apavorados dos primeiros refugiados assim que as avistaram caminhando em sua direção.

Halie mal se mexia. Deixou que Ágata executasse a maior parte do trabalho – ela tinha poder tanto para matá-los quanto para ressuscitá-los, afinal. Permaneceu apenas por perto, atacando vez ou outra, observando o momento da ressurreição e pensando na maneira com que estavam sendo massacrados. Não tinham chance contra Ágata.

Erga-se, Renegado! – dizia Ágata. – Agora você serve à Rainha Banshee.

Ao final da tarefa, quando não havia mais humanos à vista, Halie recostou-se em uma árvore, refletindo sobre sua insignificância.

Deplorável. É o que eu sou: uma morta-viva deplorável. 

Ágata a seguiu.

– A vida não tem sentido, Halie – disse. – É no além-vida que somos realmente testados.

Halie não queria mais ser testada. Não queria mais nada. Sentia-se a pior criatura que algum dia já teve a infelicidade de colocar os pés em Azeroth.

– Você sente? – continuou Ágata. – As trevas nos cercam. Através de mim, a Rainha Banshee tudo vê. Eu pressinto ruínas em seu futuro, Halie.

– O que quer dizer? – perguntou Halie, ríspida.

Ágata a estudou por um momento.

– A Rainha quer que você mate os líderes. – disse por fim, sem se importar em responder à pergunta.

Halie achou que havia acabado. Sentiu-se estúpida por pensar que, só porque não existia mais nenhum humano do lado de fora, o trabalho estaria completo e ela poderia voltar para o Alto Comando e lidar com sua tristeza.

– Eles estão dentro do castelo – continuou a val’kyr. – Vamos pegá-los desprevenidos. Talvez, se pudermos entrar sem alarde, os deixemos sem saída.

Halie assentiu, vencida. Cautelosamente, caminhou em direção ao Castelo Fenris, com Ágata em seu encalço. Constataram que o castelo tinha sentinelas worgen espalhadas em pontos estratégicos. Ágata derrubava-as facilmente, porém não conseguia impedir seus gritos.

– Mestre! – berravam, instantes antes do golpe fatal. – Eles estão chegando!

Ágata tentou guiar Halie pelos corredores o mais silenciosamente possível. Parou de repente quando ouviu uma conversa vinda de dentro do salão.

– É o Magistrado Henrique Maleb – sussurrou, reconhecendo uma das vozes. – O líder dos refugiados. Tente espiar, Halie, quero saber quem mais está aí dentro.

Halie esticou o pescoço alguns centímetros e conseguiu visualizar o interior do salão. Felizmente, os presentes estavam absortos em sua reunião e ninguém reparou na metade de sua cabeça que apareceu brevemente por trás de uma estante cheia de livros.

Havia alguns worgens de costas para a porta, mas quando uma outra voz ribombou pelo salão, Halie não precisou do aviso de Ágata para reconhece-la de imediato:

– Os Renegados quebraram suas defesas, Magistrado – disse Lorde Darius Crowley. – Seu tempo acabou. Uma decisão precisa ser tomada! Morram em batalha e ergam-se como servidores de Sylvana… ou bebam de meu sangue e retornem como worgens, imunes à depravação propagada pelos Renegados. Ajude-nos a retomar o controle de Lordaeron para a Aliança!

– Preferimos morrer a nos transformar em worgens – rebateu o Magistrado. – Mas, como nem mesmo a morte traz um alívio para as atrocidades da guerra… Nós escolhemos vingança!

Calaram-se por um instante e o som de tecido sendo rasgado pôde ser ouvido. Ágata e Halie se olharam, confusas, e acabaram demorando tempo demais para perceber o que estava acontecendo – e, a julgar pela expressão vidrada que a val’kyr apresentava momentos antes, Sylvana devia estar se comunicando com ela.

– Corra… – murmurou Ágata, confusa. Então, como se tivesse percebido o perigo, apertou o braço de Halie e olhou desesperadamente para a porta. – CORRA!

Halie só teve um vislumbre das dezenas de worgens saindo de dentro do salão e correndo em sua direção antes de ser erguida do chão e arrastada castelo afora por Ágata.