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Este é o 16º artigo de 46 posts da série Entre Homens e Lobos.

Vó Wahl era uma pessoa excepcional, Dareon percebeu logo que a conheceu. Ao ver um worgen com quase o dobro de seu tamanho cruzando a porta de entrada de sua simplória casinha, a doce senhora de cabelos brancos enxugou as mãos no longo vestido cinzento e cumprimentou-o com um sorriso acolhedor.

– Que bom, uma visita! – exclamou ela.

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Dareon parou com uma pata ainda do lado de fora, esperando pela reação de repulsa que nunca viria. Vó Wahl não gritou, não puxou uma espingarda de trás da porta e não tentou correr do worgen que a encarava.

– Olá… – respondeu baixinho, com aquela voz bruta que a vida tratou de lhe dar.

A humilde casa em que vivia a Senhora Wahl era iluminada tenuamente pela luz de diversas luminárias penduradas nas paredes, cercada por um bonito canteiro de rosas do lado de fora. Dareon sentiu-se verdadeiramente acolhido, como se aquele fosse um lugar onde pudesse apenas ficar sentado na frente da lareira, divagando sobre seus problemas enquanto a chuva caía sem parar lá fora.

– Vai ficar para o chá, querido?

Vó Wahl ouviria meus problemas, Dareon pensou, olhando para a cadeira de balanço aconchegantemente virada de frente para o fogo da lareira acesa. De qualquer forma, o tempo era curto e esse tipo de sentimentalismo há muito não encontrava lugar em seus pensamentos. Precisava agir rápido.

– Senhora Wahl, a senhora…

– Me chame de Vó, querido. Todo mundo me chama assim.

– Eh… Está bem, Vó Wahl. Vim até aqui para avisá-la sobre a evacuação. Estamos todos deixando o Refúgio do Ocaso.

Vó Wahl balançou a cabeça tristemente.

– Oh, eu sinto muito – disse ela. – Acho que vou sentir saudades de todos…

– A Senhora precisa vir também, Vó Wahl – Dareon explicou. – É importante que arrume suas coisas agora mesmo, e eu a acompanharei.

A expressão da simpática senhorinha transformou-se numa careta de confusão.

– O quê? Ir embora? Agora? – perguntou.

– Infelizmente, mas é preciso. Aqui já não é seguro…

– Bem, se tenho que ir, então tenho que ir, não é? – ela deu uma risadinha rápida. – Mas será que você poderia ser um bom menino e me ajudar a encontrar uma coisinha? Há dias que perdi meu livro favorito, mas eu não sei viver sem ele…

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Dareon controlou-se para não bufar nem erguer a voz.

– Vó Wahl – disse pacientemente. – Eu entendo que ache isso muito importante, mas no momento nós realmente precisamos ir. Leve apenas o necessário, depois…

A Vovó balançou a cabeça novamente e usou as duas mãos para tentar empurrá-lo até a porta.

– Querido, só pega o livro pra mim, tá?

Dareon ficou parado durante alguns segundos, observando o esforço da velhinha para fazer com que se virasse e saísse à procura do livro. Finalmente, convenceu-se de que seria mais rápido encontrar de uma vez o objeto perdido do que tentar argumentar e deixou-se ser empurrado para fora.

A vovó pirou mesmo, pensou assim que a velhinha voltou para dentro, satisfeita por ter achado alguém que procurasse o livro que havia perdido. Dareon não precisou procurar muito, afinal. Depois de explorar o lado errado da casa durante alguns minutos, conseguiu avistar de longe um pequeno embrulho de linho caído no chão atrás das roseiras. Correu até lá e desembrulhou-o rapidamente, apenas para se certificar de que era um livro, então decidiu folheá-lo…

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… e o fechou com pressa, um tanto atormentado. O livro parecia ser um romance picante. A capa mostrava uma cena campestre envolvendo um homem loiro musculoso e uma jovem vestindo um corpete apertado. O pedaço de pano que o embrulhava estava encharcado, mas Dareon o enrolou novamente mesmo assim.

Quando Vó Wahl recebeu o livro envolto em linho, encarou Dareon com um olhar desconfiado.

– Muito obrigada – disse ela. – Você não andou dando uma espiada no meu livro, andou?

– Eu… Ah…

– Cadê as boas maneiras, meu querido? – Vó Wahl sorriu. – O que é que você veio fazer aqui mesmo? Ah, certo, a ordem de evacuação…

– Isso mesmo – Dareon confirmou. – Podemos ir agora? A senhora já tem o seu livro…

– Mas é claro que não! – a velhinha pareceu chocada de repente. – Que absurdo, eu não posso sair à rua vestida desse jeito… Pega lá uma roupa boa pra mim, vai. Está tudo pendurado no varal.

– A senhora não está compreendendo a gravidade da situação, Vó Wahl – insistiu Dareon. – Já devíamos estar a caminho do Refúgio do Ocaso, e a senhora ainda nem arrumou…

– Vai fazer uma velhinha ir lá fora nessa chuva? – Vó Wahl ergueu o dedo indicador na altura do nariz. – Preciso de outra roupa, não visto isso nem morta!

Dareon revirou os olhos, cansado.

– Isso não importa agora, suas roupas estão adeq…

– Vocês jovens são muito mal educados! Por acaso você foi criado por ogros? Vai lá fora e pega minhas roupas, queridinho.

Dareon respirou fundo uma, duas, três vezes. Saiu arrastando as patas, contrariado, e correu até a parte de trás do quintal. O varal era protegido pelas árvores que rodeavam os pequenos muros da casa e por parte do telhado, mas as roupas estavam úmidas quando as pegou. Não perdeu tempo escolhendo, apenas arrancou tudo o que estava pendurado e jogou sobre o ombro. Não tinha bem certeza, mas os vestidos pareciam exatamente iguais ao que ela vestia.

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Entregou as roupas boas da Vovó e ela as examinou cuidadosamente.

– Você é um docinho de côco – disse enquanto estendia um dos vestidos sobre a cama.

– E então? Podemos ir?

Vó Wahl o encarou, sorrindo vagamente.

– Onde?

Eu devia simplesmente jogá-la nas costas e ir embora de uma vez.

– Embora, Vó Wahl – respondeu pacientemente. – Vamos embora.

– Ah, certo. Vamos. Só preciso arrumar umas coisinhas e chamar o Lucky.

A Vovó agachou-se e começou a estalar os dedos baixinho.

– Lucky! – chamava. – Lucky! Onde está você, Lucky? Luck…

– O que é agora? Quem é Lucky?

– É o meu gato – Vó Walh olhou em baixo da cama. – Psst! Lucky! Venha cá, Lucky! Ah, minha nossa, não consigo encontrar o Lucky…

Dareon olhou em volta, mas não havia nenhum Lucky à vista. Suspirou demoradamente uma última vez e então ajudou Vó Wahl a se levantar.

– Vó Wahl – disse ele, cansado. – Se eu encontrar o seu gato, me promete que vamos embora?

Vó Wahl chacoalhou a cabeça energicamente.

– Prometo, prometo! – respondeu ela. – Desculpe, eu não posso sair sem levar o meu gatinho, pobrezinho. O cantinho em que ele mais gosta de brincar é o carrinho quebrado perto do pomar. Assim que você trouxer ele aqui a gente sai, tá?

Resignado, Dareon caminhou em direção ao pomar lentamente, xingando meio mundo em pensamentos. Estava na metade do caminho quando começou a escutar barulhos vindos de trás, mas sempre que se virava para ver o que acontecia, estava sozinho.

Deixou de prestar atenção nos ruídos ao redor quando finalmente avistou Lucky, o gato, empoleirado sobre uma pedra perto do carrinho quebrado. Dareon aproximou-se cuidadosamente, mas o gatinho, que já parecia estar acuado, miou alto e encolheu-se ainda mais.

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– Psst – chamou baixinho, mas então lembrou-se de que era um lobo gigante sobre duas patas e os gatos jamais o encarariam como a melhor companhia do mundo.

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Dareon aproximou-se cautelosamente e até recebeu a atenção do gatinho durante alguns segundo, mas Lucky logo virou-se para o lado novamente, miando amedrontado. Olhava diretamente para algo à sua esquerda, as orelhinhas em pé e o pelo ouriçado. Dareon notou que havia algo errado e apressou-se para verificar, mas não precisou dar dois passos e o problema apareceu à sua frente: um morto-vivo de aparência assustadora protegido por armadura, uma espada enorme nas mãos, saía de seu esconderijo improvisado atrás das pedras.

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O cheiro dele deve ser pior do que o meu. O soldado Renegado encarou-o por um instante e logo ergueu o braço na tentativa de acertar-lhe um golpe com a arma, mas Dareon impulsionou o corpo para cima e saltou sobre ele. O morto-vivo gritou, enraivecido, e ganhou uma mordida no braço.

Enquanto lutava para se desviar dos golpes tortos que o Renegado desferia em sua direção, Dareon escutou vagamente o som de passos muito próximos, mas não conseguiu se virar para ver quem se aproximava. Dois segundos depois, uma sombra passou voando por cima de sua cabeça e logo em seguida seu corpo foi esmagado pelo peso descomunal de outro worgen enorme.

Embolados na briga, o Renegado e os dois worgens rolaram na terra e se estapearam até conseguirem se levantar. Ficaram os três em pé, formando um triângulo, encarando-se mutuamente enquanto tentavam descobrir o momento certo de atacar. Dareon olhou atentamente o segundo worgen, imaginando de onde saíra, e então percebeu que seu rosto era ligeiramente mais afinado. Depois sentiu-se idiota por não perceber antes que se tratava de uma fêmea, uma vez que ela era menor em estatura e usava um vestido cinzento em farrapos.

– Ninguém mexe com o meu gatinho, seu filho de uma égua! – gritou a worgenin, enfurecida, e pulou repentinamente sobre o morto-vivo, as garras afiadas erguidas diretamente na direção de seu rosto. Ela trazia um rolo de macarrão em uma das mãos, empunhando-o como se fosse uma arma, e rosnava sem parar.

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Os dois caíram no chão e rolaram para trás até atingirem um arbusto encharcado. Dareon observou a briga até que finalmente a worgenin se levantou e embrenhou-se na mata novamente, deixando para trás os restos do Renegado caídos na lama.

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“Meu gatinho”, ela disse. Será possível…

            Dareon olhou para a pedra onde o gatinho estava, mas àquela altura não havia mais nada. É claro, pensou ele, constrangido. No meio de toda essa confusão…

Demorou mais do que esperava para encontrar o bichano novamente, uma vez que a chuva incessante fazia com que o rastro deixado pelo seu cheiro se perdesse. Depois de muitos “psst” frustrados, Dareon finalmente enxergou uma ponta do rabo amarelo aparecendo entre as folhagens de uma das árvores do pomar.

Esforçando-se para não fazer barulho, ergueu os braços e segurou o gatinho rapidamente, sem lhe dar a chance de escapar. Lucky miou alto e cravou as pequenas garras em sua pata, mas Dareon ignorou todas as reclamações e levou-o debaixo do braço para casa.

O gato da Vovó correu esconder-se debaixo da cama assim que Dareon soltou-o no tapete. A velhinha estava sentada em sua cama, encarando o fogo na lareira, as roupas meio rasgadas e um rolo de macarrão jogado aos seus pés. Quando notou a presença de Dareon, ela ergueu os olhos com ar confuso e passou as mãos pelos cabelos desgrenhados.

– Eu não… Não entendo… – disse a Vovó. – Acho que estou tendo alguns problemas de memória. Você tem essas coisas também? Céus… – ela abaixou as mãos e olhou para os próprios dedos. – Como é que essa sujeira toda foi parar debaixo das minhas unhas?

– Eh… Memória, sei – Dareon coçou o queixo. – A senhora não faz ideia do que aconteceu?

– Eu pedi para você ir buscar meu gatinho e então… Acordei no chão, desse jeito…

– Seu gatinho está aí.

Vó Wahl agachou-se para segurar Lucky no colo.

– Oh, garotão da Vovó! – ela sorriu. – Espero que isso não tenha lhe dado muito trabalho. Só vou trocar de roupa e nós podemos ir, está certo?

Dareon aguardou pacientemente do lado de fora enquanto Vó Wahl se arrumava. Tinha certeza do que estava acontecendo, mas preferiu manter o segredo para não alarmá-la. Lembrava-se de ter ouvido alguns refugiados comentando sobre os lapsos de memória de alguns worgens, mas nunca havia pensado muito a respeito. Deve ser uma sensação horrível, concluiu, pensando em tudo o que ele próprio havia passado quando acordara dentro da jaula, sem ter noção do tempo, desconhecendo tudo o que havia acontecido em um período que nem mesmo podia calcular.

– Oi! Estou pronta para partir! – gritou Vó Wahl lá de dentro, alguns minutos depois. – Já estou com a minha roupa mais bonita, meu livro e meu gato queridinho. Espero que não esteja me esquecendo de nada…

Vó Wahl recusou-se a subir nas costas de Dareon, a despeito de todos os argumentos que ele utilizou para tentar convencê-la. Ao final de algum tempo de discussão, o acordo foi que os dois iriam caminhando, porque a Vovó andava devagar e precisava tomar cuidado com o gatinho.

Assim que avistaram a entrada do Refúgio do Ocaso – depois do que pareceu uma eternidade –, Vó Wahl suspirou, cansada.

– Querido – disse ela. – Já estamos quase chegando. Acho que estou te atrasando um pouco… Vá na frente, e avise a sua prefeita, a menina Armstead, que eu já estou chegando.

– Mas…

– Vai logo, meu filho!

Dareon levou um tapa no braço e assentiu ligeiro. Correu para dentro do Refúgio do Ocaso, tranquilizando-se somente quando notou a presença de vigias patrulhando a região. Gwen Armstead gritava ordens para seus soldados quando o viu chegando, e cavalgou imediatamente em sua direção.

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– E então?

– Os irmãos Hayward avisaram que não participarão da evacuação por terra – Dareon informou. – Preferem uma fuga pelo mar, dizem que se sentem mais seguros.

– Bem… Nós tentamos, não é? – Gwen deu de ombros. – E quanto à Vó Wahl?

– Já está chegando – Dareon sorriu, vitorioso.

A prefeita bateu as palmas, alegre.

– Você fez o impossível, Dareon: convencer a Vó Wahl a deixar a casa dela – Gwen riu. – Você é demais, vou te contar, viu?