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Este é o 1º artigo de 46 posts da série Entre Homens e Lobos.

A manhã estava morna, cinzenta e úmida – nada de novo, uma vez que os últimos dias haviam sido também assim. Acordava sempre cedo, antes de qualquer luz ter brilhado no céu, e passava uns bons minutos espreguiçando-se diante da janela, observando o lago de águas calmas, sentindo o frescor da brisa que adentrava o quarto. Observava também a fumaça que começava a sair da chaminé da padaria e os vendedores de frutas, que já àquela hora empurravam seus carrinhos cheios de maçãs maduras e pêssegos doces como o mel.

Era uma vila pacata, povoada por cidadãos modestos que seguiam suas vidas de maneira simples e sem extravagâncias. Quando saía da estalagem sob o raiar do dia, cumprimentava todos pelo nome e fazia seu caminho até a beira do Lago Plácido, onde sentava-se na grama e empenhava-se em sua tarefa diária. Munido de iscas e uma vara de pescar, gastava horas encarando as águas tranquilas até que alguém viesse chamá-lo na hora do almoço. Nunca ia no horário certo, no entanto, e acabava almoçando sozinho na maioria dos dias, exceto os poucos em que era acompanhado por Vernon Hale, que adorava conversar sobre os melhores peixes da região e os tipos de isca mais eficientes.

– Venha almoçar, Dareon! – gritava a estalajadeira Briana, dia após dia. – Não pense que vou guardar comida!

A despeito das ameaças, Dareon sempre encontrava uma tigela de guisado quando voltava à estalagem, meia hora depois de o almoço ter sido retirado da mesa. Naquele dia, porém, não se atrasou – talvez um pouco, mas ainda conseguiu entrar na estalagem enquanto ainda estava lotada. Correu até a cozinha e entregou os três peixes que havia pescado naquela manhã à Glória Femmel, que o agradeceu gentilmente.

– Hum – murmurou Briana quando Dareon voltou à sala de refeições. – Tem um lugar ali, perto da moça nova.

Seguiu sua indicação e encontrou duas cadeiras vazias, encostadas nos cantos da mesa sob a qual uma garota engolia sua sopa de peixe lentamente, encarando a parede de forma distraída.

– Olá? – disse Dareon. – Posso me sentar?

– Oh – respondeu ela, despertando de seus devaneios –, é claro.

Dareon puxou umas das cadeiras e sentou-se à sua frente.

– Então – prosseguiu depois de ter recebido sua tigela –, veio fazer o que por aqui?

– Ajudar. Parece que algo está agitando os cidadãos de Vila Plácida, mas ainda não descobri o motivo – ela suspirou. – Acho que precisarei investigar, mas agora estou sem equipe…

– Você faz parte de uma equipe de investigação?

– Oh, é uma história muito longa – ela deu um risinho tímido, arrastando sua cadeira para trás. – Posso lhe contar outra hora, mas agora preciso falar com Salomão. Deve estar louco para resolver esses problemas.

– Temo que isso não será possível – Dareon deu de ombros. – Estou partindo.

– Está partindo quando?

– Hoje, se tudo der certo. Sabe como é… chega uma hora em que é preciso voltar para casa.

– Na verdade, não sei como é – disse a garota com um sorriso triste. – Deixei a minha há pouco tempo. Onde fica sua casa?

– Longe – Dareon suspirou, cansado –, muito longe. Era muito jovem quando decidi explorar o mundo. Meu povo não é, hum… muito sociável. Eu quis me rebelar e fazer diferente… Entre idas e vindas, acabei parando aqui. Venho adiando minha volta há algum tempo, mas agora é inevitável. A situação está… se complicando.

– Oh, é algo muito sério?

– Não sei dizer. Recebi uma mensagem urgente… acho que preciso ver com meus próprios olhos.

– Hum, que misterioso – ela riu. – Então você é uma espécie de… andarilho?

            – De certa forma – Dareon acompanhou-a no riso. – Venho andando de vila em vila há algum tempo. Às vezes faço algum serviço para pagar minha estadia, ajudo nas colheitas, pesco peixes e caço animais para ceder a carne às cozinhas das estalagens…

– Certo – a garota levantou-se. – Que sutil. Bem, boa sorte em sua volta. Espero que as coisas se arrumem.

– Obrigado. Tomara que consiga ajudar Salomão. Foi um prazer conhecê-la…

– Ellis – ela sorriu.

– Até mais, Ellis.

Ela acenou uma última vez com a cabeça e se afastou, deixando-o livre para acabar de comer rapidamente e subir até seu quarto para refazer sua trouxa de roupas. Arrumou a cama, limpou as gavetas e, por último, fechou as cortinas. Prendeu sua adaga no cinto e deixou a estalagem sem fazer alarde, agindo naturalmente e procurando não mostrar os pertences que carregava debaixo do braço. Caminhando calmamente pela pequena vila, cumprimentava todos os conhecidos como de costume, negando-se a realizar qualquer despedida.

Atravessou a ponte de concreto que ligava Vila Plácida ao outro lado do Lago e seguiu na direção de Ariena Penafúria, que lhe acenou de longe assim que o viu.

– Ei, Dareon, querido – disse ela, abrindo um sorriso. – Para onde, hoje?

Dareon subiu em um dos grifos e tirou o cabelo dos olhos antes de responder.

– Para Guilnéas.

Levantou voo, ainda observando a expressão boquiaberta de Ariena. Era óbvio que jamais conhecera algum outro cidadão de Guilnéas, assim como a grande maioria dos habitantes das pequenas vilas, seja pela hostilidade inerente ao povo ou pelo fato de que Genn Greymane  decidira quebrar o pacto com a Aliança após a Segunda Grande Guerra, mantendo seu título de Rei.

Dareon sentiu um nó apertar-lhe a garganta quando avistou de longe as enormes muralhas que cercavam a cidade. Pousou ali perto e completou o resto do caminho a pé, pensando que o lugar estava frio e cinzento como sempre, mas havia algo a mais que deixava tudo com aspecto mais sombrio. Antes de tentar descobrir o que era, sentiu uma lança ser espetada em seu peito.

– Alto lá! – gritou um guarda, empurrando-o cada vez mais para trás. – Onde pensa que vai?

– Para Guilnéas – disse Dareon, e então notou o símbolo da cidade no peito do guarda. – Sou cidadão de Guilnéas, meu amigo! Vim ajudar, seja lá o que esteja acontecendo.

– Oh – o aperto da lança ficou um pouco menos forte –, você foi um dos que recebeu o chamado? E só chegou agora?

– Hum – Dareon arqueou as sobrancelhas –, por quê? Estou atrasado?

O guarda suspirou e baixou a lança.

– Um pouco – segurou-o pelo braço e apontou com o queixo na direção da muralha. – Por aqui.

Dareon seguiu-o por uma entrada camuflada e, depois de percorrerem incontáveis corredores, a luz finalmente voltou a aparecer por uma brecha que dava no pátio central de Guilnéas.

– O que está acontecendo, afinal? – perguntou antes de saírem. – Não havia nenhum detalhe na mensagem, eu n…

– A cidade foi fechada, não está vendo? A situação está péssima – o guarda cortou-o. – De um lado, sofremos reprimendas dos mortos-vivos, que agora decidiram reivindicar o controle de Guilnéas para si. Por outro, temos que lidar ainda com um problema interno… Vêm aparecendo pela cidade criaturas assombrosas que ninguém consegue… explicar! Andam como humanos mas agem e uivam como… lobos.

– Mas o que… – murmurou, percorrendo com os olhos a desolação de sua cidade natal.

– Aquele ali é o príncipe – o guarda apontou para o centro do pátio, onde um homem falava a uma tropa de guardas de cima de seu cavalo. – Liam Greymane. Sugiro que fale com ele.

– Obrigado – Dareon seguiu na direção que lhe fora indicada, observando os poucos cidadãos que se encolhiam nos cantos das ruas. Ao chegar perto do príncipe, conseguiu ouvir o final do discurso:

– Nós protegemos Guilnéas contra o Flagelo – dizia Liam. – Protegemos contra a rebelião do portal norte. E vamos protege-la de qualquer que seja esta nova ameaça. Preparem-se, guardas! Não sabemos quantos invasores vamos enfrentar, mas os Promontórios já foram tomados e perdemos o contato com as cidades portuárias. Provavelmente estaremos em menor número. Protejam o perímetro e mantenham dois guardas em cada portão o tempo todo.

Enquanto os guardas se aprumavam para seguir as ordens, Liam pareceu notar a presença de Dareon.

– E você? – perguntou, encarando-o. – O que está fazendo aqui, ô cidadão? Você não soube? A cidade foi completamente fechada! Procure o Tenente Walden, ele lhe dará mais instruções sobre a evacuação.

– Evacuação? – Dareon chocou-se. – Mas eu acabei de cheg…

– Aqui não é seguro! – o príncipe cortou-o. – Procure abrigo antes que seja tarde. Walden está logo ali – indicou a direção com a mão. – Vamos, quero todos para fora!

Dareon preferiu não discutir e seguiu para onde lhe fora ordenado. Seu caminho foi interrompido logo na segunda esquina, entretanto, quando olhou para trás, na direção do portão que se abria para a ponte que ligava a Praça dos Mercadores ao Distrito da Catedral. Três corpos jaziam no chão de pedra, rodeados de corvos. Dois deles envergavam a mesma armadura dos guardas da cidade, enquanto o último não usava elmo e possuía uma insígnia ao peito. Suas costas tinham profundas marcas de garras e o sangue formava uma poça ao seu lado.

– Quem é esse? – gritou Dareon a uma mulher que passava correndo ao seu lado. – Ei!

– Oh – a mulher levou as mãos à boca –, Tenente Walden! Está m-morto? Oh, céus, é melhor fugir enquanto há tempo! Estamos sendo atacados!

No instante em que ela parou de falar e correu na direção contrária, foi possível ouvir o grito de Liam Greymane vindo do pátio logo ao lado e Dareon pôs-se em pé rapidamente, certo que de que havia algo errado.

Conseguiu distinguir os sons do combate antes mesmo de chegar à praça, que estava tomada pelas criaturas das quais o guarda lhe contara. Assustou-se diante do tamanho das feras e da ferocidade com que atacavam, procurando em meio à confusão a figura do príncipe Liam.

– Moço! – escutou um chamado. – Aqui! Por favor!

Procurou com o olhar e encontrou uma mulher bem vestida que lhe acenava com uma mão de trás de uma carroça carregada de abóboras, enquanto na outra tentava equilibrar uma espada visivelmente pesada demais.

– Olá – Dareon correu até ela. – Precisa de ajuda, senhora?

– Oh, até que enfim! – disse a mulher. – Não podemos deixar que tudo seja destruído! Com o isolamento de Guilnéas, não sobreviveremos ao inverno se perdermos mais provisões… Precisamos resgatar os suprimentos!

– Certo, farei o que for possível – disse Dareon, segurando-a pelos ombros. – Agora fique calma e esconda-se.

A mulher assentiu com a cabeça e encolheu-se um pouco mais atrás da carroça de abóboras, sem, contudo, deixar de lado sua espada. Dareon saiu correndo na direção do príncipe, que combatia os lobos com a ajuda de alguns guardas. Estava quase alcançando-o quando avistou um machado pendurado pelo cabo do lado de dentro da cerca de uma casa abandonada. Decidiu tomá-lo e, juntando-o com a adaga que trazia escondida, ajeitou as armas uma de cada lado de seu cinto.

– Você de novo? – berrou Liam quando o viu. – Parece que não é daqueles que fogem ao perigo. Muito bem. MANTENHAM SUAS POSIÇÕES, HOMENS!

– Tenente Walden está morto – gritou Dareon, tentando sobrepor sua voz aos sons de luta. – Existem marcas de garras em suas costas…

– O q-quê? – disse Liam. – Malditos worgens… O inferno se abriu sobre nós! Meu pai avisou que as criações do arquimago Arugal ficariam enfurecidas e totalmente fora de controle. Mas isso não importa. Já que está aqui, ajude-nos a dar cabo delas! Vamos mostrar do que os guilneanos são feitos.