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Este é o 6º artigo de 7 posts da série Vultos do Passado.

 

Para não levantar suspeitas, Ellis aguardou que a multidão se dissipasse por completo antes de voltar para a entrada do Arroio da Lua. O Vulto desaparecera assim como surgira: sabe-se lá de que forma, mas, de repente, simplesmente não estava mais ali.

Os mendigos da vila não pareceram ter notado sua ida, e os poucos que o fizeram, não se deram ao trabalho de se importar além do necessário. A agitação era muita e a revolta causada pelo discurso havia se infiltrado em cada um dos desabrigados, transformando a pacata praça do Arroio da Lua num caos fora do comum.

Foi necessária uma meia hora após o Vulto ter ido embora para que as coisas se acalmassem. Ellis aguardou, nervosa, aproveitando o tempo para observar a vila detidamente, procurando por algum rastro de sombra, uma mulher escondida em algum canto, qualquer um que pudesse lhe causar uma pontinha de suspeita. Não encontrou.

Frustrada, saiu andando lentamente quando achou que era hora. Como esperava, ninguém prestava muita atenção nela – estavam todos ocupados demais debatendo em grupinhos isolados, e não se preocupavam nem em sussurrar. Enquanto passava, Ellis ouvia as conversas e podia distinguir entre as muitas vozes que falavam ao mesmo tempo as frases de apoio à revolução, os depoimentos revoltados de andarilhos e a oposição ao reinado da família Wrynn.

– Dava para ouvir os gritos daqui – disse Capitão Alberto antes que pudesse se manifestar.

– Oh, mas é claro que dava – respondeu Ellis. Apesar de cansada, sentia-se agitada demais para repousar, então preferiu ignorar os bancos em torno da pequena fogueira que aquecia o Capitão e permaneceu em pé, sem conseguir desmanchar a carranca que trazia no rosto. Suspirou longamente e relatou todos os detalhes da reunião que presenciara na praça do Arroio da Lua, tentando ser minimalista nos detalhes, na esperança de que o Capitão pudesse perceber algo que ela tivesse deixado escapar.

Capitão Alberto ouviu o relatório sem interferir. Quando Ellis acabou de falar, seu olhar se perdeu nas chamas da fogueira por alguns instantes.

– Estamos com um grande problema nas mãos, Ellis – disse por fim, coçando o queixo lentamente. – Temos que descobrir a identidade dessa ameaça sombria para que possamos pedir a ajuda de Ventobravo. Quem sabe exista alguma outra forma…

Por mais que quisesse, Ellis não conseguia encontrar algo de valor para dizer. Não tinha ideias que pudessem ajudar na solução do caso, e estava tão abatida, mental e fisicamente, que preferiu deixar que o Capitão refletisse sozinho. Pôs-se a observar o céu, tentando se lembrar da última vez em que conseguira ter uma noite tranquila de sono. Afastou o pensamento quando se recordou de que o alvorecer de um novo dia se aproximava e havia coisas a se fazer.

De repente, sentiu como se uma luz houvesse sido acesa em seu cérebro. Lembrou-se da dica que Mantoforte havia lhe dado ainda no Morro da Sentinela:

“Eu tenho ainda um outro aliado na base do Arroio da Lua”, dissera o Marechal. “O nome dele é Thorálius. Acho que as habilidades dele nos serão úteis para resolver esse mistério.”

Quem sabe?

– Capitão! – chamou alto demais. – O senhor sabe quem é Thorálius?

– Oh, e quem é que não sabe, menina? – respondeu Capitão Alberto. – Por q… Oh, mas que ótima ideia! Ele talvez possa nos ajudar! Thorálius é um xamã, amigo de Mantoforte, que veio a Cerro Oeste para estudar a devastação elemental que se abateu sobre nós.

– Eu poderia ir falar com ele… – disse Ellis timidamente. – Se lhe aprouver, Capitão.

– Mas é claro que você deve ir! – gritou o Capitão. – Céus, como foi que não me lembrei dele até agora? Thorálius deve estar aqui, pelos arredores… Não sei ao certo.

Ellis ficara tão animada que não se importou de ter que procurar o xamã. Sua busca foi curta, porém. Avistou uma tenda grande de cuja entrada saía uma fumaça de cheiro doce proveniente de uma infinidade de incensos acesos numa plataforma. Em torno dela estavam duas sentinelas e uma figura azulada que não poderia ser ninguém menos que Thorálius.

– Hum, olá – disse Ellis ao se aproximar. Estava maravilhada. Nunca havia visto um draenei assim tão de perto. – Você é Thorálius?

– Certamente que sou – respondeu Thorálius com uma risada espirituosa. – E você quem é, humana?

– Sou Ellis. Vim de Elwynn… Bem, estou passeando por Cerro Oeste já faz algum tempo.

– Oh, sim, você é a jovem que está investigando o mistério dos assassinatos – Thorálius soprou os incensos. – E algumas coisinhas a mais, acho eu.

– Como é q…

– Eu sei de tudo – respondeu numa voz etérea, movendo as mãos ao seu redor. Depois soltou uma gargalhada. – É mentira, menina. Um de meus guardas ouviu toda a conversa entre você e o Capitão Alberto e me contou a história. Veio procurar minha ajuda? – ele fungou. – Já era hora. Sim, eu acho que posso ajuda-los. Quando eu estava em Nortúndria, ajudei o povo de Valgarde a desvendar alguns mistérios dos vraikalen com a ajuda do mundo espiritual. Talvez essa estratégia funcione nesse caso também e você possa ter alguns segredos revelados.

Ellis estava confusa. Não havia entendido muito bem o plano de Thorálius, mas ele parecia tranquilo e convicto enquanto falava. Decidiu confiar.

– E o que eu preciso fazer? – perguntou cautelosamente.

Thorálius apontou para seus incensos e assumiu um tom mais sério.

– Este incenso colocará seu corpo e sua mente em um profundo estado meditativo – disse, entregando-lhe um incensório. – Assim que o transe se iniciar, será transportada para o mundo espiritual. Não perca tempo me perguntando, eu não sei o que você verá. Será um privilégio só seu.

Thorálius deve ter detectado uma ponta de dúvida no rosto de Ellis, pois logo em seguida falou:

– Não resista ao transe, Ellis. Permita que os espíritos revelem a ti o que sabem.

– Posso usá-lo aqui mesmo? – perguntou Ellis, sentindo-se perdida.

– Não – respondeu o xamã. – Deve partir. Vá até as Minas Mortas, um lugar de grande significância para a história de Cerro Oeste. Só use o incenso quando estiver lá dentro. Pode chegar lá através da velha casa de fazenda, a sul daqui. Se tiver alguma dúvida, siga os desabrigados.

Ellis respirou fundo e assentiu. Preferia estar longe antes de se desesperar. Não sabia ao certo onde devia ir, então decidiu andar pelo Arroio da Lua até encontrar a casa que ficava mais ao sul. Não parecia grande coisa por fora, mas Ellis pensou algumas vezes antes de adentrá-la.

Só preciso de alguns minutos de coragem, pensou enquanto controlava a respiração, tentando agir de forma normal para não chamar a atenção dos mendigos que caminhavam no interior da casa. Com o incensório em mãos, o coração saltitando em seu peito, colocou um pé para dentro da entrada da casa e se assustou ao constatar que seu interior era incrivelmente maior do que parecia quando a casa era vista pelo lado de fora.

O lugar era sujo e escuro. Retirantes desabrigados subiam e desciam escadas, alguns carregando suas trouxas nas costas. Outros apenas descansavam em algum canto da casa, deitados no chão ou apoiados nas paredes de madeira. Ellis alarmou-se, no entanto, quando avistou homens de rosto parcialmente coberto, portando armas e vestindo couro negro. Se suas suposições estivessem corretas, aquela casa era nada menos do que o esconderijo dos Défias.

Subiu as escadas rapidamente, encontrando mais mendigos no caminho. Viu, por fim, um homem de meia idade empurrando um vagonete cheio de pedras que entrava em uma porta meio escondida. Sem saber para onde mais devia ir, decidiu segui-lo. O caminho que descobriu era tortuoso e parecia pouco confiável: uma pequena estrada de madeira, rodeada por paredes de pedra, que descia até se perder de vista.

Quando começava a pensar que tinha se perdido, Ellis percebeu que o caminho voltava a se iluminar aos poucos e o chão estava mais estável. As passagens de madeira tornavam-se escassas, e quase tudo a sua volta era de pedra. Pequenas lamparinas se prendiam às paredes, garantindo ao lugar uma iluminação sombria que deixava as sombras dos mendigos que se aventuravam por ali de tamanhos assustadores.

O conjunto todo deixava Ellis com arrepios. Encontrou um canto isolado, escondeu-se atrás de algumas caixas e pilhas de madeira e ergueu seu incensório. Encostou-o numa das lamparinas, aguardou que estivesse aceso e, sem ter qualquer noção do que devia fazer em seguida, seguiu seu instinto e fechou os olhos.

Assim que o cheiro adocicado atingiu suas narinas, algo estranho aconteceu. Uma imagem sem cor apareceu em sua mente e, assim como em um sonho, em um instante estava presenciando uma cena um tanto desfocada, porém de claro entendimento.

Alguns soldados vestidos com armadura completa, ostentando em seus escudos o inconfundível símbolo da Aliança, estavam reunidos em frente a uma casa, proferindo ameaças enquanto convidavam alguém a sair para enfrentá-los.

– Você não tem mais onde se esconder, VanCleef! – gritava um dos guerreiros. – Os Défias acabaram!

– Viemos aqui para acabar com isso – gritou outro soldado. – Enfrente-nos, covarde!

A resposta demorou a vir. Um grito de desafio vindo de dentro da casa pôde ser ouvido, e, em seguida, um homem armado saiu para enfrentar os soldados que o aguardavam.

– Ninguém pode desafiar a irmandade! – gritava ele. Alguns segundos depois, mais pessoas saíram de dentro da casa e correram ao encontro dos guerreiros da Aliança. Enquanto combatiam, VanCleef continuava a gritar ao mesmo tempo em que brandia sua espada e direcionava sua fúria a todas as direções:

– Serviçais, todos vocês! Tolos! Nossa causa é justa! A Irmandade prevalec…

Edwinn VancLeef não conseguiu concluir seu protesto. A frase foi cortada quando caiu no chão, morto por algum soldado em seu momento de distração. Os outros Défias logo foram subjugados, abatidos pela queda de seu líder.

            – Vitória para a Aliança! – comemoravam os soldados quando o combate teve fim. – Glória para Ventobravo!

            – Vamos voltar ao morro da Sentinela, aliados – disse um deles –, e informar Gryan do falecimento de VanCleef!

            Os outros soldados concordaram e, olhando com desprezo o corpo sem vida de VanCleef, deixaram-no onde caíra e foram embora, passando por cima dos corpos dos outros Défias mortos.

            Segundos depois, a figura de uma menina saiu de dentro da casa, onde estivera oculta pelas sombras para se esconder da ira dos soldados da Aliança. A garotinha correu até VanCleef e abaixou-se diante de seu corpo, olhando com incredulidade.

            – Papai… – disse num sussurro triste. Então cobriu os olhos com as mãos e começou a soluçar desesperadamente.

Ellis despertou se seu transe assustada, tentando entender tudo o que havia visto. Sentia-se atordoada, tento pela fumaça quanto pela loucura que fora passar por aquela experiência.

Lembrava-se de quando Capitão Alberto lhe informara que VanCleef estava morto havia muito tempo, descartando-o em suas hipóteses de pessoas que poderiam ser responsáveis pela assinatura das propagandas. Fora a única vez em que ouvira o nome antes da visão, e Ellis não tinha se dado conta de que tinha sido ele o comandante da extinta Irmandade – e algo lhe dizia que o Capitão não teria lhe dado tão pouca importância na ocasião se soubesse de que havia mais de um VanCleef vivo à época da queda dos Défias.

Olhou para os lados, amedrontada, e apagou o incensório. Tentou sair dali o mais rápido que podia, mas foi difícil encontrar a saída, uma vez que não prestara atenção no caminho. Quando por fim conseguiu achar a trilha por onde viera, começou a andar muito rápido, desviando por entre os mendigos que a encaravam, e alcançou o Capitão Alberto à primeira luz do dia.

– Preciso voltar ao Morro da Sentinela – disse, sem fôlego. – É urgente. Tive uma… Visão do passado, eu acho.

– Oh, entendo. Foi uma dessas coisas espirituais que o Thorálius inventa, não foi? Bem, pode pegar uma carona daqui, se é assim tão importante.

Ellis o encarou enquanto subia em sua montaria.

– VanCleef tinha uma filha – disse sombriamente. Partiu logo depois, deixando para trás um Capitão boquiaberto