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Este é o 5º artigo de 23 posts da série Renegada.

 

Ágata a largou no chão em frente à Dama Sombria, no mesmo buraco onde estiveram os cadáveres no dia em que se apresentara no Alto Comando dos Renegados. Desesperada, ainda tentando entender o que acontecera de fato, Halie levantou-se e fez uma vênia com a cabeça em sinal de respeito à Rainha.

– Hum – resmungou Sylvana, olhando-a de cima. – Um tanto inesperado, eu diria.

– Oh, perdão – disse Halie rapidamente. – Ágata precisou me carregar dessa forma porque…

– … Crowley tem cãezinhos novos – completou Sylvana. – É, fiquei sabendo.

– E quem é que contou para a Senhora? – perguntou Halie. – Com todo o respeito, Senhora. Digo, Vossa Alteza – e inclinou a cabeça alguns centímetros.

– Eu vejo tudo, queridinha – respondeu a Rainha Banshee. – Ridículo. Ridículo é o que foi aquele showzinho do nojento do Crowley. Mas parece que ele é mais poderoso do que eu esperava. Ainda assim, não passa de um homem de carne e osso… cheio de segredos – deu uma risadinha leve e piscou. – Segredos que eu conheço muito bem.

Halie aguardou pacientemente, ainda um pouco envergonhada pela forma desajeitada com que chegara até ali, esparramada no chão sob o olhar duro de Sylvana, e pela pergunta idiota que havia feito.

Mas é óbvio que ela vê tudo, pensou, preocupada, lembrando-se de sua performance terrível na tarefa que lhe havia sido atribuída. No mínimo ela vai me mandar embora daqui, depois de todo esse fiasco…

            – Você me serviu a contento, Halie – continuou Sylvana. – Eu faria bom uso de alguém como você no Sepulcro. Tenho um plano para dar cabo do Crowley e seus rebeldes de uma vez por todas.

Hã? Não levou a bronca toda que esperara, afinal. Bem, “a contento” não era exatamente um sinônimo de “excepcionalmente bem”, mas ainda assim era um adjetivo muito melhor do que o que esperara para caracterizar sua atuação desastrosa. Forçou um sorriso.

– Você poderia nos ajudar, Halie? – perguntou Sylvana ternamente. Halie pensou por um momento que talvez ela estivesse fazendo alguma espécie de piada ao perguntar-lhe se poderia ajudá-la e começaria a gargalhar em instantes, mas, na realidade, seu tom de voz pareceu-lhe bem sincero.

– P-posso – Halie arriscou responder, um tanto acanhada. – Com todo o prazer.

A Rainha abriu um sorriso esplendoroso e bateu as palmas rapidamente.

– Oh, que ótimo! – disse, animada. – Bem, nesse caso… Venha comigo. Vamos cavalgar até o Sepulcro.

– O quê? – Halie perguntou impulsivamente, demonstrando todo seu espanto. – Eu? Ir junto c-com a Senhora, Vossa Alteza?

– Sim, querida – a Rainha revirou os olhos um vez. – Tenho muito o que discutir com você. Acho essencial que compreenda a história de Lordaeron e o infortúnio dos Renegados.

Halie assentiu e esperou calmamente, sem saber muito bem o que fazer com as mãos ou se devia puxar algum assunto com a Dama Sombria enquanto aguardava seu cavalo de guerra descarnado, que logo foi trazido pelas rédeas por um mestre de estábulo com cara de poucos amigos que ignorou o agradecimento solenemente e retornou ao seu posto, resignado.

– Esplêndido – disse Sylvana, sorrindo novamente. – Vamos menina, monte de uma vez.

Halie pulou para cima do cavalo e tratou de seguir a Rainha, que já se direcionava para a saída do Alto Comando. Antes de sumir de vista, fez um aceno para as val’kyren, que se puseram a segui-la prontamente, batendo as asas translúcidas num ritmo quase ensaiado.

Precisou acelerar para alcançar Sylvana, já na estrada a caminho do Sepulcro.

– Hum, Vossa Alteza? – disse baixinho ao se aproximar. – Se me perdoa a curiosidade, o que exatamente vamos fazer no Sepulcro?

– Para começar, Halie, eu quero que você pare de se martirizar dessa forma – respondeu a Rainha, diminuindo a velocidade para um trote calmo. – Ah, sim, eu sei. Pode acreditar que eu sei o que você está sentindo. Eu não… eu não fui a Rainha Banshee a vida toda, Halie. E meu povo nem sempre foi os Renegados.

Halie arregalou seus olhos deteriorados e a encarou, alarmada. A Rainha mantinha o tom de voz baixinho e de vez em quando a olhava, mas era óbvio que aquele era um assunto delicado também para ela.

– Antigamente, essas terras abrangiam os reinos ao norte de Lordaeron, governado pelo rei Terenas Menethil – sua voz tornou-se sombria de repente. – O rei tinha um filho chamado Arthas. Oh… Arthas. Só de pronunciar seu nome, eu tremo de ódio – Sylvana a olhou profundamente desta vez, e Halie fez questão de prestar muita atenção. – O jovem Arthas tomou para si uma espada amaldiçoada conhecida como Gélido Lamento, com a qual matou o próprio pai e devastou esta terra e todos os seres vivos que nela viviam.

Halie precisou colocar seu cavalo novamente na posição correta, pois tinha soltado as rédeas e começava a se afastar. Sylvana encarava o chão, guiando sua montaria inconscientemente, os olhos vermelhos perdidos num passado que preferia esquecer.

– Eu mesma morri pelas mãos de Arthas – continuou a Rainha. – Foi quando ele e seu exército saquearam minha terra natal, Quel’Thalas, e chacinaram meu povo. Com uma crueldade sem limites, Arthas arrancou o espírito de meu corpo e fez de mim uma Banshee, para servir ao Flagelo. Todos os que foram mortos pela máquina de guerra do Flagelo tiveram destino semelhante, na realidade. Começaram a andar por aí como mortos-vivos sem consciência.

Halie sentiu uma pontada de compaixão. Não sabia há quanto tempo aquilo havia ocorrido, mas, definitivamente, Sylvana Correventos devia ter passado por muitas intempéries até chegar ao seu posto de Rainha Suprema dos Renegados. Seu temperamento difícil fora moldado por anos de sofrimento e abandono, resultado da escravidão de sua alma, submetida forçadamente às cruéis vontades de Arthas.

– Mas Arthas não era invencível – Sylvana sorriu levemente. – Seu poder minguava a cada dia e seu controle sobre a vontade dos condenados enfraquecia. Eu o ataquei exatamente quando estava mais fraco. Quando estava prestes a executar sua sentença, o verme conseguiu escapar do destino e fugiu para aquele deserto gélido que é Nortúndria. Mas, com sua partida, também se foi seu controle sobre a massa de mortos-vivos de Lordaeron. Depois de recuperar meu corpo, consegui resgatar os membros do Flagelo que ficaram para trás.

A entrada do cemitério que servia de entrada para o Sepulcro já podia ser avistada de onde estavam. Halie se sentiu triste – não queria deixar de conversar com Sylvana. Queria saber mais sobre a terrível tragédia que permeara a vida de sua Rainha.

– Os Renegados nasceram da crueldade e da inclemência de Arthas, aquele que viria a ser o Lich Rei – continuou a Dama Sombria. – Nosso objetivo… nosso único propósito era destruí-lo. Nos unimos à Horda e iniciamos nossa jornada pela redenção. Agora, querida, o Lich Rei está morto. E nós? – Sylvana deu uma gargalhada seca. – Nós voltamos! As pessoas que em vida chamaram este lugar de lar, agora o fazem na morte. Mas a Aliança não reconhece nossos direitos – ela parecia agora realmente enfurecida. – Eles reivindicam essas terras, tentando invalidar os direitos dos fundadores deste reino. Jamais o permitirei… jamais! Lordaeron pertence aos Renegados, hoje e sempre.

Chegaram ao Sepulcro em silêncio, uma vez que Halie não sabia o que – ou se devia – responder à confissão da Rainha Banshee. Sua tensão era quase palpável. Halie pensou que aquilo tudo não devia ser uma coisa que ela contasse para todos os mortos-vivos depressivos que encontrasse no caminho, então decidiu deixa-la refletir em paz e permaneceu quieta, desfrutando interiormente de seu pequeno privilégio.

Só agora Halie havia percebido a ausência das val’kyren, que estavam logo atrás de si quando deixou o Alto Comando com Sylvana. Ágata, Dália e Artura as aguardavam no cemitério e aproximaram-se lentamente quando Sylvana chamou. Halie prendeu sua montaria nas cercas do Sepulcro e juntou-se a elas.

– Você entende, Halie? – perguntou a Rainha de repente. – Você entende a importância de nossa missão aqui? Crowley e os cães da Aliança devem ser detidos.

Sylvana fez uma pausa e suspirou longamente.

– Um comboio de veteranos e catapultas dos Renegados foi emboscado hoje mais cedo ao tentar atravessar a Miséria de Olsen, diretamente ao sul daqui – continuou a Rainha. – Nada se salvou. Todos os soldados foram mortos e as catapultas, destruídas.

– Oh, eu sinto muito – disse Halie.

– É, eu sinto também – respondeu Sylvana. – A matilha de Dentessangue foi a responsável pela emboscada. Bem, muito provavelmente eles já fugiram de volta para as colinas para preparar o próximo ataque covarde. O dia deles vai chegar. Mas, por hora, quero que você vá até a Miséria de Olsen e honre nossos soldados tombados.

– Eu irei, Vossa Alteza – disse Halie, ajeitando a postura.

– Ótimo – Sylvana sorriu. – Obrigada, Halie. Me traga as insígnias dos Renegados mortos que conseguir encontrar. Eles merecem uma homenagem decente.

Halie assentiu e correu para buscar seu cavalo. Já ia saindo quando, para sua surpresa, avistou duas figuras conhecidas ao longe: Almirante Machadinha e Torok, os orcs simpáticos que conhecera na Retaguarda dos Renegados. Acenou para eles e cavalgou em sua direção, sorrindo abertamente.

– Ei, vocês dois! – disse, saltando do cavalo. – O que fazem por aqui?

– Ah, menina, que bom te ver novamente – disse a Almirante.

– Oi, Halie! – gritou Torok, puxando-a para um abraço de orc. – Oh, não fosse essa situação complicada que nos trouxe até aqui, eu te chamaria para tomar um… chá.

Almirante Machadinha revirou os olhos.

– Os que sobreviveram ao seu ataque a Fenris conseguiram beber do sangue do lobo – disse ela. – Eles se transformaram em worgens ferozes, loucos por vingança. Agora eles infestam o Lago Lordamere e atacam meus cães do mar. Muitos até já foram mortos… Ah, esses worgens monstruosos têm que parar.

Halie não prestou muita atenção no resto da conversa. Logo disse que precisava ir e se despediu com um “até logo”. Havia decidido seguir até a margem do Lago Lordamere para verificar como estava a situação antes de se concentrar em sua missão em honra aos mortos. Não precisou ir muito longe para constatar o que temia: os worgens tinham conseguido deixar a Ilha e começavam a se instalar perto dos acampamentos dos Renegados.

Havia inúmeros orcs desmaiados no chão, perto de carroças destruídas e queimadas. Quando podia, Halie se aproximava sorrateiramente e tentava reanimá-los. Decidiu ir embora após alguns minutos, quando percebeu que não fazia sentido se aproximar mais do Lago. Provavelmente, havia reforços de Fenris em toda a margem e seria necessário muito mais do que uma pobre Renegada para limpar a área por completo e salvar os orcs atacados.

Estava à procura da estrada quando avistou um deque de madeira em uma ponta distante do Lago. Cautelosamente, cavalgou até lá, seguindo sempre pelo meio da floresta, até conseguir avistar o outro lado. Percebeu que havia canhões dispostos em fila, apontados todos para a Ilha de Fenris – e só então notou que aquele era o lugar em que as duas margens mais se aproximavam uma da outra.

Pasma por ter descoberto a provável rota de entrada dos worgens, Halie pôs-se a vasculhar o resto do deque e, em um canto escondido, encontrou uma caixa metálica com inúmeros visores e botões. Sem saber muito bem o que estava fazendo, agachou-se e apertou o maior botão que havia.

Levou um susto quando ouviu um zumbido e sentiu a vibração da caixa. Tirou o dedo do botão imediatamente e encarou-a, muito quieta, aguardando alguma coisa acontecer.

– Quem é? – Halie ouviu uma voz perguntar, e então percebeu que aquele era um console de comunicação. – Alô?

– Hum, olá? – respondeu, apertando novamente o botão.

– Halie? É você?

– Sim. E quem é aí?

– Sou eu, Machadinha! – respondeu a voz da caixa, e Halie a reconheceu de imediato. – Oh, como é que você foi parar aí? Por que não me avisou que ia se aventurar por essas bandas, menina? Que perigo! Que bom que achou meu comunicador, o coloquei aí para algum caso de emergência… Me conta logo o que aconteceu por aí.

– A situação por aqui está péssima – disse Halie, observando em todas as direções para se certificar de que nenhum worgen estava por perto. – Os orcs foram atacados, estão sem transporte ou alimento, a maioria deles está inconsciente e é muito provável que a maioria deles esteja morta. Não tive tempo de me certificar, o lugar está cercado por uma multidão de worgens…

– Eu já imaginava – disse a Almirante tristemente.

– Acho que será preciso um exército para limpar a área – continuou Halie. – Se os orcs, que não eram poucos, foram massacrados dessa forma…

Halie perdeu-se na frase e fixou o olhar na margem oposta do Lago Lordamere. Avistou algumas figuras se aproximando, depois outras, e, de repente, conseguiu definir a silhueta de centenas de worgens, todos se preparando para pular na água.

– Halie? – chamou a Almirante Machadinha. – Ainda está aí? Alô?

Mas Halie não escutava-a mais. Tinha se levantado e corrido para o centro do deque. Ali, sozinha e sem proteção, precisou decidir se fugia naquele momento ou se ficava para tentar detê-los.

Correu na direção de um canhão e, sem saber muito bem o que fazer, começou a atirar descontroladamente nos invasores, deixando o Lago Lordamere com a água rubra devido ao sangue derramado.