Ellis prendeu a respiração quando o rosto do Vulto Sombrio voltou-se em sua direção. Aguardou por um momento, estática, preparando-se para ser pega no flagra. Mas nada aconteceu – aparentemente, o Vulto estava só examinando o lugar para ter certeza de que estava de fato vazio.
Lentamente, Ellis afastou-se, tomando o cuidado de se esgueirar pelos cantos para não correr o risco de fazer barulho. Encontrou o início das escadas e, depois de se certificar de não estar mais ao alcance da vista de Helix e do Vulto, pôs-se a desce-las rapidamente, levando consigo os segredos da torre para revelar a Marta.
– Esta noite – disse quando se aproximou o suficiente. Saíra da Torre correndo descontroladamente até o encontro da agente, que a aguardava em seu mesmo posto fixo na frente da Torre do Pinel, agora livre de sentinelas. – Vai acontecer alguma cois…
– Quem é que está aí? – gritou Marta, apontando sua carabina para todas as direções.
Ellis revirou os olhos. O efeito da poção ainda não havia se dissipado completamente.
– Sou eu – respondeu baixinho. – Aqui, do lado esquerdo.
– Ellis? Ah… – Marta abaixou a carabina e apertou os olhos na direção indicada. – É, acho que eu consigo ver um contorno fraquinho… Bem, de qualquer forma, o efeito da poção já vai passar. Eu estava preocupada com a sua demora, menina. Imagina só que gafe se o efeito passasse quando você estivesse lá dentro? Alguém poderia te ver, e você estaria completamente desprotegida…
– Hoje à noite vai acontecer alguma coisa no Arroio da Lua, seja lá onde fique este lugar – Ellis disse rapidamente. – Eu vi Helix. Conversava com uma mulher… A mesma que vi numa caverna perto da Fazenda dos Taturana. Sua imagem é uma sombra. É completamente desconcertante olhar para ela, porque não se vê nada, nenhuma feição, nem um brilho no olhar, nada…
– Hum – Marta coçou o queixo. – Que estranho, não vi ninguém entrar… E o que exatamente eles estavam planejando?
– Ela deseja falar com os cidadãos antes da aurora – respondeu Ellis. – Helix a trata por “senhora”. Foi incumbido de convocar os moradores para um pronunciamento no Arroio da Lua.
– Ah, olha você aí – gritou Marta, apontando em sua direção. – Que bom que apareceu, é muito esquisito conversar com gente invisível…
Ellis percebeu que o mundo havia voltado ao normal e o efeito da poção tinha se dissipado por completo. Olhou na direção da Torre para se certificar de que ninguém as espiava e apoiou-se no tronco caído ao lado de Marta.
– Mas o que diabos poderia estar acontecendo no Arroio da Lua? – prosseguiu a agente. – Não estou gostando nada disso, Ellis.
Marta pulou de seu esconderijo de repente e abriu a mochila que carregava.
– Vou terminar meu relatório e partir para Ventobravo imediatamente – disse enquanto abria um rolo de pergaminhos. – A AVIN precisa ser informada sobre os acontecimentos de Cerro Oeste. Sugiro que você faça o mesmo e apresente-se a Mantoforte o mais rápido possível e conte a ele o que descobriu.
Ellis assentiu e, sem ter mais com o que se atrasar, despediu-se da agente Marta e partiu de imediato de volta ao Morro da Sentinela. Refletira sobre as informações que obtivera na Torre do Pinel e percebeu que, qualquer que fosse o evento planejado pelo Vulto Sombrio, Mantoforte teria pouco tempo para decidir o que fazer.
Entrou no Morro correndo e foi diretamente ao seu encontro.
– Devagar, menina – disse o Tenente Horatio ao avistá-la. – Qual é a emergência?
Mantoforte estava parado em frente ao worgen prisioneiro, encarando-o curiosamente. Apesar da aparência cansada, Ellis notou que o worgen ainda mantinha no rosto a mesma expressão ameaçadora de horas antes.
– Marechal – chamou Ellis, apoiando-se no Tenente para recuperar o fôlego. – Encontrei a agente Marta. Helix estava mesmo escondido na Torre do Pinel, como o senhor previu.
– Hã – o Marechal veio em sua direção rapidamente. – E então?
Ellis olhou para o Tenente antes de fornecer o último detalhe:
– Ele estava se encontrando com o Vulto Sombrio.
Horatio Laine abriu a boca em descrença e ouviu atentamente a história completa de Ellis, que relatou suas descobertas e os prováveis problemas no Arroio da Lua.
– Mas quem é esse tal de Vulto Sombrio? – o Marechal gritou, transtornado. – Vamos já para o Arroio da Lua!
– Hum, todos nós, Marechal? – perguntou o Tenente. – E quem é que vai ficar aqui?
Mantoforte respirou fundo e olhou de relance para o worgen antes de responder:
– É… Certo, acho melhor eu ficar por aqui – disse, controlando a voz. – Ellis, já que foi você quem descobriu tudo isso, siga para o Arroio da Lua. Já faz um tempo que montamos uma base lá perto. Um de meus melhores cadetes controla a área junto a uma companhia de soldados do Morro da Sentinela. Apresente-se ao Capitão Alberto e descubra se ele sabe alguma coisa sobre os acontecimentos do Arroio da Lua.
Ellis procurou o olhar do Tenente, que prontamente assentiu para encorajá-la. Por algum motivo, percebeu que se sentia descomunalmente nervosa.
– S-sim, Marechal – disse, sem muita convicção.
– Eu tenho ainda um outro aliado na base do Arroio da Lua – continuou o Marechal. – o nome dele é Thorálius, o conheci quando servi em Valgarde. Talvez você o encontre por lá… Acho que as habilidades dele nos serão úteis para resolver esse mistério.
Resignada, Ellis tentou memorizar as direções que lhe foram informadas e seguiu para o Arroio da Lua. O caminho foi mais longo do que esperara, e já começava a se preocupar com a demora quando avistou a vila pacata que se abria à sua frente.
Um jovem guarda lhe apontou o local onde se encontrava o Capitão Alberto quando Ellis o questionou, alguns metros antes da entrada.
– Capitão? – perguntou ao se aproximar.
– Pois não? – respondeu o homem, levantando-se do banquinho em que estivera sentado.
– O Marechal Mantoforte me enviou, senhor.
– Oh, abençoado seja – o Capitão a puxou mais para perto e olhou para os lados. – Os nativos estão inquietos. Eu não sei o que está acontecendo, mas a atividade dos desabrigados na área quadruplicou nos últimos dias… Não sei, mas eu diria que eles estão planejando alguma coisa. Como é o seu nome mesmo?
– Ellis, senhor.
– Certo. Olha, Ellis, nós notamos um aumento da violência entre os desabrigados daqui. Estão agitados… Agora, quem quer que esteja por trás de tudo isso, está ficando mais organizado. Há pouco tempo, um grupo de bandidos veio até aqui para entregar panfletos. Acho que seria bom você entrar na vila e procurar por alguma prova… Panfletos, cartazes, o que for. Traga tudo o que encontrar para mim. Quem sabe a gente não descobre o líder da coisa toda por meio desse material?
Ellis adentrou o Arroio da Lua cautelosamente, mas concluiu, após alguns minutos, que ninguém estava prestando atenção em sua presença. A pequena vila era povoada por mendigos, andarilhos e retirantes, que limitavam-se a lançar-lhe um breve olhar desinteressado e depois voltavam às suas atividades normais.
Enquanto observava-os, Ellis notou que as casas eram todas antigas e desgastadas. O mato cobria parte das calçadas, os telhados caíam aos pedaços e a sujeira tomava conta de toda a vila. Se não fosse a presença dos desabrigados, Ellis tomaria o lugar por abandonado.
Seu olhar pousou sobre um chafariz seco e quebrado no meio da praça central da vila. Ao se aproximar, notou um pedaço de pergaminho caído no chão abaixou-se prontamente para verificar do que se tratava.
Quando leu o conteúdo daquela Edição da Gazeta do Arroio da Lua, seu coração quase saltou pela boca.
“Grupo de samaritanos desabrigados brutalmente assassinados atrás da Fazenda dos Taturana
Segundo as testemunhas, os quatro homens assassinados levavam tortas de barro para um abrigo na costa leste quando foram brutalmente agredidos. Eis o relato de Jimbo Joanez, o Vela, testemunha ocular da cena: ‘Eu vi tudo com esses dois olhos que a terra há de comer. Foi uma mulher. Ela estava bastante alterada. Matou os coitados em plena luz do dia, berrando palavrões e gritando que amava Ventobravo e o Rei Varian Wrynn. Acho que ela matou Lu logo depois. Eu estava muito chocado e não conseguia mais olhar.’”
Ellis engoliu em seco e dobrou o pergaminho rapidamente, enfiando-o dentro do bolso. Olhou para os lados para se certificar de que ninguém estava suspeitando de seu comportamento e arrumou a postura, pretendendo parecer inalterada pelo choque que a leitura havia lhe causado.
Quando passeava o olhar pela praça, um cartaz pregado no batente da porta de uma casinha de madeira chamou sua atenção. Sutilmente, aproximou-se mais e estreitou os olhos para enxergar as letras embaçadas pelo gasto.
Era uma propaganda misteriosa convocando os cidadãos do Arroio da Lua a participar da revolução pretendida pelo Vulto Sombrio.
“Irmãos e irmãs, aproxima-se a hora de nossa redenção! Esta noite nos desfaremos de nossas máscaras e renasceremos como heróis!
V”
Ellis suspirou e arrancou o cartaz da madeira. Apesar de saber do que se tratava, sua atenção se prendeu em dois detalhes específicos: as palavras revolucionárias usadas e a letra que assinava o chamado.
Quem é V?, pensava, vasculhando todo o acervo de informações que armazenava em seu cérebro. Apesar do esforço, pareceu-lhe que não conhecia ninguém que pudesse ser o responsável pela propaganda.
Decidiu, então, entrar na estalagem do Arroio da Lua. Aparentemente, o lugar estava tão largado quanto todo o resto da vila, à exceção de alguns mendigos empoleirados nas janelas do lado de fora. A despeito disso, Ellis tomou um susto quando foi recebida por um sujeito mal encarado que veio correndo em sua direção, ameaçando-a com uma faca.
– Oi, doçura – disse ele.
– Não sou doçura – respondeu Ellis, e o capanga tentou ataca-la.
– Há – gritou quando desviou do golpe torto do bandido, que estava visivelmente bêbado. Uma cotovelada na têmpora bastou para deixá-lo desmaiado no chão da estalagem.
Já estava se virando para procurar algo dentro da estalagem quando pensou no motivo do bandido estar ali. Resolveu revistá-lo rapidamente e não se arrependeu. De dentro de um dos bolsos do capanga, Ellis tirou uma bandana vermelha, feita exatamente do mesmo tecido que encontrara quando precisou investigar o assassinato dos Taturana.
Guardou a bandana no bolso e vasculhou o resto da estalagem. Acabou encontrando um jornal clandestino no último quartinho em que entrou, em meio à pedaços de barris quebrados e mesas desmontadas. Abriu em uma página aleatória e leu seu conteúdo:
“Mal posso acreditar. Suportamos a tormenta durante quatro longos anos, mas em breve tudo acabará. A Irmandade renascerá para livrar esta terra da escória e da corrupção.”
Ellis pensava que já havia se demorado demais em sua investigação, mas ainda vasculhou outras casas em busca de mais pistas. Só parou quando passou os olhos de relance sobre um livro, largado no canto de uma casinha abandonada, perdido em meio aos destroços de móveis.
Havia no meio do livro um pedaço de pergaminho dobrado. Ellis puxou-o e analisou seu conteúdo. Era um panfleto informativo que, assim como o cartaz, estava assinado por V:
“Dê um tabardo a um homem e ele jurará lealdade a sua causa até a morte. Tal homem que se torna gado do governo e não se importa com as dificuldades dos outros. Ele veste o tabardo de seus líderes e só se importa com os desejos deles.
V”
Satisfeita com sua coleta de provas, decidiu que já era hora de voltar e apresentar seus resultados.
– Teve sorte? – perguntou o Capitão.
– Encontrei algumas coisinhas – Ellis despejou o conteúdo de seu bolso sobre um dos banquinhos. – Hum, Capitão, tem alguém assinando alguns panfletos com a letra V. O senhor sabe quem poderia ser?
– V? – o Capitão parou para pensar por alguns segundos. – O único V que eu conheço é o VanCleef, mas está morto há muito tempo. E… Céus, Ellis, isso é uma… uma bandana vermelha?
Ellis assentiu e observou o Capitão ergue-la até a altura dos olhos para examiná-la de perto.
– Já faz cinco anos que não vejo uma bandana vermelha – disse ele. – Será que esse Vulto Sombrio está tentando recriar a Irmandade Défias?
Irmandade?, Ellis pensou. Tinha algo sobre uma Irmandade em algum desses pergaminhos…
– Parece que a reunião vai acontecer em breve – o Capitão prosseguiu. – Mas eu não posso ir até lá, todos me reconheceriam. Preciso que você participe deste encontro para levantar mais informações, Ellis.
Ellis assentiu e retornou à praça do Arroio da Lua. Aos poucos, uma multidão foi se formando e, meia hora depois, a praça estava lotada de desabrigados, que olhavam em todas as direções, esperando que algo acontecesse. Ellis misturou-se aos mendigos e permaneceu quieta, observando a movimentação.
A maioria dos presentes – inclusive Ellis – tomou um susto quando uma voz decidida reverberou pela praça.
– Reúnam-se, irmãos e irmãs! Venham todos e escutem!
Ellis demorou algum tempo para encontrar a fonte da voz. Precisou seguir o olhar de um mendigo para conseguir distinguir a forma do Vulto Sombrio, erguida acima de todos, em pé sobre uma carroça de feno.
– Irmãos e irmãs – ela continuou. – Nós fomos abandonados! Somos as crianças órfãs de Ventobravo. Nosso rei fica sentado em seu trono de ouro e ignora nosso sofrimento, enquanto nossos filhos morrem de fome nas ruas!
Os desabrigados murmuraram em concordância.
– A guerra dele nos custou nosso ganha-pão – o Vulto prosseguiu após uma pausa dramática. – Nós pagamos pela vitória da Aliança com nosso sangue e com o sangue de nossos entes queridos! A hora chegou, irmãos e irmãs, de dar um fim à essa injustiça. O governo de Ventobravo, da Aliança, deve ser responsabilizado pelo que fez conosco!
A multidão começava a gritar, apoiando o discurso indignado do Vulto Sombrio. Ellis escutava gritos pedindo “JUSTIÇA!”, “ABAIXO REI WRYNN!” e “DEVOLVAM NOSSA LIBERDADE!”, e precisou apurar os ouvidos para acompanhar o resto da proclamação.
– Hoje nós renascemos! – gritava o Vulto. – Hoje nos postamos em desafio como homens e mulheres, não mais como números sem rosto e sem nome!