Os desabrigados agradeciam-na, mal acreditando nas porções de ensopado que lhes eram servidas. Os que percebiam que havia bastante pediam para repetir e gritavam animadamente, avisando os mendigos que estavam por perto para se aproximarem.
– Jamais esquecerei este momento – disse um deles de boca cheia. – Talvez um dia eu lhe recompense por este ato bondoso.
Ellis não conversava muito, mas sorria enquanto distribuía a refeição de maneira simpática. Por causa dos gritos dos desabrigados esfomeados, acabou demorando alguns minutos para perceber a confusão que se desenvolvia na entrada do Morro da Sentinela.
– Deixe-nos entrar! – berrava um andarilho. – Monstros desalmados! Estamos com fome e frio!
– Isso é igualdade e justiça para todos? – berrou outro retirante, enquanto soldados armados protegiam a entrada do Morro com uma parede de escudos.
Ellis alarmou-se, sem entender o motivo da atitude das sentinelas. Terminou de distribuir o ensopado o mais depressa que pôde e correu de volta para a torre.
Ao se aproximar, no entanto, avistou três figuras conhecidas conversando com um homem com aparência imponente logo na entrada. Aproximou-se cautelosamente, com medo de levar uma bronca do Tenente ou de um de seus investigadores, e cumprimentou-os baixinho, tentando passar desapercebida para falar novamente com Esperança, que a olhava de dentro da torre.
Tão absorta Ellis estava em sua tentativa de entrar rapidamente na torre que acabou não percebendo a enorme berlinda que prendia um worgen pelo pescoço e pelos punhos no canto do saguão. O que a alertou foi o rosnado emitido por ele um instante antes de Ellis se chocar contra seu corpo.
– Oh, perdão – disse ao worgen, que se limitou a mostrar-lhe os dentes de forma ameaçadora.
– Ellis – chamou o Tenente.
Ellis xingou em pensamento e, dando as costas ao worgen prisioneiro, voltou-se para Horatio com um sorriso esplendoroso no rosto enquanto ajeitava o vestido.
– Ah, olá! – disse. – O senhor por aqui!
– Como você não vem até mim, tive que vir até você – ele respondeu. Ellis não deixou de notar uma nota de seriedade por trás do tom brincalhão, que combinou perfeitamente com o olhar preocupado que o Tenente lhe lançou.
– Hum, quanto a isso… Bem, Tenente, eu precisava ajudar a pobre Salma. O senhor deve conhecer o casal Saldanha. São pessoas muito boas e… estavam tão precisados de uma ajudinha que eu…
– Está certo, Ellis. – o Tenente a cortou. Só então Ellis percebeu que poderia estar interrompendo alguma conversa séria.
– Oh… – disse ela, sem saber muito bem o que fazer. – Certo. Então eu vou… ali. – apontou para trás, na direção da entrada da torre, mas ninguém mais prestava atenção nela, já novamente absortos em seus assuntos urgentes.
Ellis desistiu de explicar para onde iria e caminhou na direção de Esperança o mais rápido que pôde sem que parecesse ridícula.
– Oi – cumprimentou Esperança depois de uma risadinha inocente. – Você tem bom coração, Ellis. Sua boa ação de hoje vai contar para quando o dia do julgamento final chegar, eu tenho certeza.
Ellis piscou, encarando-a. Nunca sabia o que responder àquela garota.
– Hum… obrigada. – disse, após um silêncio longo demais. – Esperança, agora eu preciso ir. Boa sorte com a sua… luta contra a fome. – disse por fim, mas logo se arrependeu. Devia ter dito algo mais profundo. Até o momento, em todas as vezes que se falaram Esperança havia demonstrado uma compaixão sem limites e um comprometimento absoluto com a causa dos desabrigados.
– Oh, que pena! – Esperança fez uma expressão de pesar. – Mas foi ótimo ter a sua companhia neste dia, Ellis. Você será sempre benvinda aqui!
Ellis sorriu e se retirou. Arriscou olhar para trás por um instante, e, como esperava, constatou que Esperança continuava parada, olhando-a com emoção enquanto acenava lentamente com uma das mãos em despedida.
Para seu alívio, quando saiu da torre percebeu que o Tenente já havia acabado sua conversa com quem quer que fosse o outro homem. Aproximou-se deles e sorriu calmamente.
– Ellis, este é o Marechal Miguel Mantoforte. – disse o Tenente. – Acho que você poderia ajudá-lo numa coisinha aqui.
O Marechal acenou educadamente e olhou para os lados com cautela antes de começar a falar:
– Quando meu tempo de serviço em Serra Gris acabou, eu voltei para Cerro Oeste e encontrei as terras em pior situação do que estavam quando eu parti – ele balançou a cabeça tristemente. – Os onerosos custos da nossa guerra resultaram em milhares de cidadãos desabrigados, que agora migram para cá, estabelecendo assentamentos em fazendas e vilas desocupadas. Para piorar tudo, agora estamos sendo atacados por gnolls. Preciso que você saia em defesa de Cerro Oeste, Ellis. Alguém os está liderando, e precisamos descobrir quem.
Ellis observou a situação antes de se meter no meio dos gnolls. Por mais guardas que estivessem a postos, muitos deles brigando com os invasores, estes ainda eram muitos. Ellis procurou manter-se junto de grupos se defensores para vasculhar as imediações sem correr o risco de ser atacada sozinha e desprevenida.
Após um tempo, acabou encontrando uma carta com o lacre rompido e se afastou para lê-la. Correu os olhos pelo pergaminho, enrolou-o novamente e escondeu-o rapidamente. Decidiu que deveria voltar imediatamente e entregar a mensagem ao Marechal.
– Marechal – gritou afobada, correndo em sua direção. – Consegui pegar as ordens de ataque!
O Marechal estendeu a mão apressadamente e recebeu o pergaminho. Leu-o rapidamente e sua expressão fechou-se ao final. Permaneceu em silêncio por um tempo, ainda analisando o conteúdo da carta.
Enquanto o Marechal pensava, Ellis lembrava-se da curta e direta mensagem e tentava pensar em algo que pudesse ajudar de alguma forma a resolver o mistério.
“Lacaios, eis as ordens de nossos senhores. Saqueiem o Morro da Sentinela e libertem o almirante. O que encontrarem na pilhagem é de vocês.
Helix”
– Helix? – murmurou de repente o Marechal. – Eu já ouvi esse nome… e foi há pouco tempo. Mas quem será esse almirante? Bem, de qualquer forma, ao menos já temos uma pista. A AVIN está de olho nesse Helix Quebracâmbio desde que ele entrou no território da Aliança, há duas semanas. O Mathias Shaw me enviou uma carta avisando que destacou uma agente para seguir de perto o sujeito. Encontre a agente Marta Hari e você encontrará Helix.
– E onde ela poderia estar agora, Marechal? – perguntou Ellis.
– Hum – ele coçou o queixo. – A Marta veio à cidade há dois dias para pegar mais provisões. Acho que ela mencionou que estaria perto da Torre do Pinel, a sudeste daqui, nas Planícies do Pó.
Ellis assentiu e permaneceu parada, encarando-o. Percebeu tarde demais que as instruções haviam terminado, pois antes que conseguisse dizer “sim, senhor”, o Marechal já gritava impacientemente:
– Circulando, Ellis, circulando!
Assentiu ligeiro e acenou brevemente para o Tenente. Antes de sair, no entanto, olhou novamente para o prisioneiro worgen. Ele a examinava, entediado, e Ellis quase achou que havia uma ameaça de sorriso se formando em sua boca.
Estranho, pensou. É assim que prisioneiros se comportam?
Não entendia muito de comportamento prisional, mas achava que aquela ponta de sarcasmo aparente do worgen não era lá muito normal.
Resolveu deixar para lá o assunto e partiu rumo à Torre do Pinel. Não sabia bem o quanto já havia andado, mas decidiu que devia estar perto de seu destino. Ainda não avistava nenhuma Torre, portanto achou que podia se dar ao luxo de parar durante alguns minutos e recostar-se em uma árvore, tomando o cuidado de não se afastar demais da estrada.
Ellis sentia-se especialmente devagar naquele dia. Pensou que talvez fosse o resultado da falta de descanso cumulada ao excesso de trabalho, então deixou-se ficar por um tempo desfrutando da sombra, sem ninguém por perto para atrapalhar seu sossego.
– Ei – disse de repente uma voz muito familiar.
Ellis olhou para o lado e sentiu seu coração se apertar. Halie encarava-a, sentada na grama, brincando com algumas folhas de um arbusto próximo da árvore.
– Você está acabada – continuou Halie, dando uma risadinha simpática. – De qualquer forma, acho que seu cérebro está meio afetado. Você já foi capaz de resolver mistérios muito piores do que essa historinha de Cerro Oeste. E olha que a resposta está na sua cara.
Ellis tentava emitir algum som, mas suas cordas vocais estavam travadas. Sua voz não saía de jeito algum, então ela somente encarava o rosto da irmã, com a boca meio aberta, uma expressão embasbacada estampando sua face.
– Eu amo você – disse Halie, e lhe deu um leve tapinha no braço. – E vê se acorda.
Ellis abriu os olhos e girou o pescoço em todas as direções, assustada. Respirou fundo, tateando o chão no lugar onde vira a irmã. Continuava aparentemente intocado. Não sabia por quanto tempo tinha dormido, mas aquele sonho fora tão real que seu coração ainda palpitava loucamente, sua boca estava seca e seus olhos, marejados.
Mas foi só um sonho, precisou lembrar a si mesma. Halie não esteve aqui.
Tentou se lembrar de seu rosto, de seu cabelo, se sua roupa. Agora, todos os detalhes já começavam a fugir de sua memória fraca – mas, apesar disso, sabia que havia algo errado. Uma expressão mais cansada, a pele talvez alguns tons mais pálida… Não sabia.
Demorou alguns segundos para se recuperar do susto, mas precisava prosseguir. Forçou-se a não pensar no sonho e reuniu todas as suas forças para se levantar e continuou seu caminho, arrastando o peso de seu corpo pela estrada até localizar a Torre do Pinel.
Caminhava na direção da entrada quando uma movimentação estranha chamou sua atenção. Parou para observar um tronco de árvore, oculto em parte por um arbusto. Primeiro viu a lamparina encostada logo atrás. Depois, conseguiu distinguir a figura de uma mulher disfarçada em meio às folhagens.
– Agente Marta Hari? – chamou cautelosamente.
– Hum? – a mulher respondeu, mal prestando atenção em Ellis.
– Oh, que bom, estava a sua procura! Sou Ellis. Quem me enviou foi o Marechal Miguel Mantoforte. Preciso encontrar Helix Quebracâmbio. Ocorreu um assalto dos gnolls ao Morro da Sentinela, e, ao que tudo indica, é ele quem está por trás disso.
– Hã? Helix está por trás do ataque aos gnolls? – Marta apontou para a Torre logo em frente. – Ele está ali dentro há dias. Só estava procurando um pretexto para prendê-lo.
Marta sorriu e tirou de dentro de sua mochila um frasco cheio com um líquido transparente.
– A torre é fortemente vigiada. – continuou. – Só do lado de fora são seis mercenários armados. Mas com isto aqui – ela ergueu o frasco. – talvez você consiga entrar lá sem ser percebida. É uma poção de esconderijo.
Ellis estendeu a mão e segurou o vidrinho. Já ouvira falar naquela poção, mas nunca havia experimentado nem visto seus resultados pessoalmente.
– Pode deixar que eu cuido da cobertura – disse Marta, dando dois tapinhas em sua carabina.
Ellis passou correndo pelos mercenários enquanto Marta derrubava-os com tiros certeiros. Assim adentrou a torre, começou a sentir os efeitos colaterais da poção: sua visão se embaçou, seu estômago se revirou e sua cabeça começou a latejar. Mas não ia fraquejar naquele momento.
Subiu as escadas em espiral da torre que pareciam não ter fim, até que finalmente alcançou o topo. Examinou os cantos da ampla sala e somente após algum tempo conseguiu distinguir duas figuras que cochichavam, um tanto ocultas pela sombra. Quando se aproximou o suficiente para examinar o que ocorria, Ellis quase soltou um grito.
Helix Quebracâmbio, um goblin mal-encarado montado nas costas de um ogro, conversava aos sussurros com o Vulto Sombrio.
– Os gnolls falharam, senhora. – disse Helix.
– Eles forneceram a distração necessária. – respondeu o Vulto. – Nós prosseguiremos conforme planejado.
– Mas, senhora, o almirante aind…
– O almirante será libertado ao alvorecer.
– Sim, senhora. – Helix baixou a cabeça, resignado.
– O dia do juízo se aproxima, Helix. – prosseguiu o Vulto. – Chame os cidadãos. Desejo falar com eles uma última vez antes da aurora.
– No Arroio da Lua, senhora?
O Vulto assentiu lentamente.
– Sim – disse. – Esta noite.