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Este é o 1º artigo de 23 posts da série Renegada.

Um vento vindo do oeste soprou através de seus cabelos emaranhados, trazendo consigo uma torrente de memórias obscuras. Sentada sobre a grama úmida, com o olhar perdido no horizonte, Halie lembrava-se de seu primeiro dia.

O primeiro dia de minha morte.

            “Erga-se!”, havia dito a val’kyren. “Bem vinda ao reino dos vivos!”. Fora a primeiríssima coisa que ouvira ao despertar. A val’kyren fizera questão ainda de lhe lembrar que voltara a vida pela benção e pelo poder da Dama Sombria – mas Halie era livre para escolher se gostaria de servi-la ou não.

Não se sentia exatamente viva, para falar a verdade. O que sentia era uma confusão tremenda. Nem dor, nem fome, nem frio, apenas confusão. Demorou o máximo de tempo que ousou para responder à oferta, mas acabou aceitando, graças ao pouco discernimento que conseguira juntar naquele momento. As outras opções não eram muito convidativas – ser solitária eternamente ou virar um zumbi sem cérebro.

            “As val’kyren ressucitam centenas de cadáveres todos os dias… Ágata acabou de ressucitar você. Mas nem todos têm a mesma sorte.” dissera o coveiro. Um cadáver. Eu era um cadáver.

Precisou aprender muita coisa. Foram tantas informações novas que Halie levou certo tempo para perceber que não sentiria a dor, a fome ou o frio que esperara quando fora despertada. Nunca mais sentiria coisa alguma.

Apesar de tudo, julgava que havia lidado extremamente bem com a novidade se comparada a alguns recém-ressucitados para quem teve de dar a notícia. É claro que fora um período difícil – ainda pensava como humana, ainda possuía sentimentos. Mas, decidida a não deixar-se levar pela solidão profunda, resolveu que era mais prático aceitar a condição. Não queria acabar sem rumo por aí. Pobrezinhos, esses que não conseguem ser tão resolutos. Lembrava-se do desespero de alguns – especialmente de uma garota chamada Lílian Voss, que não aceitou o fato e simplesmente saiu correndo em busca do pai.

Depois de todo esse tempo, ainda recordava-se de uma frase que, à época, lhe rendeu alguns dias de reflexão. Estava perdida em Plangemortis quando o Sacerdote Sombrio Sarvis a acolheu e aconselhou em tom paternal: “Nenhuma outra raça de Azeroth sofreu tanto quanto nós. Rir da cara da morte já se tornou parte da nossa natureza.”

Era esse povo sofrido que ela havia aprendido a odiar durante toda sua vida. Esse povo sofrido, exatamente o mesmo que tantas vezes sonhara em exterminar. Esse povo sofrido do qual agora fazia parte. Seria engraçado, se não fosse trágico.

– Halie! –  uma voz a despertou de seus devaneios. – Chegou uma mensagem para você! Halie!

– Estou aqui! – berrou em resposta, desencostando-se lentamente da árvore. – Pare de gritar, homem!

Correu em direção ao Executor Zigano, no centro de Montalvo, e pegou a carta. Segundo a mensagem, deveria apresentar-se ao Grão-Executor Mortuus no Alto Comando dos Renegados, pelas Ordens do Chefe Guerreiro: Floresta de Pinhaprata!.

Bem, aquilo definitivamente a surpreendera. Não fazia ideia do que pensar sobre o chamado – que tinha certa aura de urgência – mas, apesar de toda a desconfiança, não se podia simplesmente dizer não à convocação de Garrosh Grito Infernal.

Durante os dias em que cavalgou pelas estradas das Clareiras de Tirisfal teve como companhia apenas a incerteza do que encontraria quando finalmente chegasse ao seu destino.

A surpresa que teve ao receber o chamado nem se comparava, no entanto, ao espanto que lhe causou a recepção que teve ao chegar ao Alto Comando dos Renegados. O Grão-Executor Mortuus não estava sozinho, afinal. Estava acompanhado da Rainha Banshee em pessoa, em pé sobre um buraco cheio de… cadáveres.

Todo aquele esplendor mortífero lhe causou arrepios. Eu poderia ter me preparado melhor, pensou, indignada. Sentia até receio de se aproximar, toda envolta em trapos e sujeira como estava. Precisou reunir toda a coragem que encontrou para caminhar até lá e dirigir-lhes a palavra.

– Chegou na hora certa! – disse o Grão-Executor. – O Chefe Guerreiro deve estar chegando a qualquer momento para se reunir com a nossa líder e salvadora, a Dama Sombria. Apenas fique de prontidão e mantenha a compostura. Acho que quando essa demonstração terminar, todos nós vamos receber comendas!

O quê?

Halie quase se desequilibrou. Havia entendido direito?

Ei, Azeroth!, teve vontade de gritar. Vou presenciar o encontro de Garrosh e Sylvana Correventos!

A Rainha não parecia tão animada, no entanto. Andava impacientemente de um lado para o outro murmurando xingamentos variados e demonstrava constantemente sua desaprovação pela demora.

– Onde está aquele palhaço cabeça-de-ogro? – resmungou, após algum tempo. Já se preparava para proferir outra ofensa quando a terra tremeu. – Ah, falando no diabo…

Halie prendeu a respiração. Oh… E chega o Chefe Guerreiro

            – Espero que seja importante, Sylvana. – disse Garrosh. – Você sabe que abomino este lugar e seu cheiro pútrido. Por que me chamou? – antes que ela pudesse responder, o Chefe Guerreiro pareceu perceber outro detalhe no ambiente e continuou:

– E, além do mais, o que esses demônios do Flagelo fazem aqui?

– Depois que o Lich Rei morreu, muitas das cabeças pensantes do Flagelo ficaram… Sem trabalho. Esses demônios, como você gentilmente as chama, são as val’kyren. – disse calmamente a Dama Sombria. – Sou eu quem as comanda agora. – Sylvana o encarou, como se tentasse ganhar tempo para o que se seguia. – Chefe Guerreiro, eu resolvi o problema dos Renegados. Nosso povo não tem a capacidade de procriar. Com a ajuda das val’kyren, podemos usar o corpo daqueles que morreram e criar novos Renegados!

– Ágata, mostre ao Chefe Guerreiro!

As val’kyren iniciaram o ritual de invocação dos mortos. Em instantes, dezenas de novos Renegados surgiram, em pé sobre o mesmo lugar onde antes estavam seus corpos sem vida.

Garrosh, em todo o seu tamanho, era a imagem da repulsa personificada. Parecia realmente enojado.

– O que você fez aqui… deturpa as leis da natureza. “Repulsivo” é pouco para descrever isso.

Se Sylvana Correventos se importou com a opinião do Chefe Guerreiro, não deixou transparecer. Sua explicação prosseguiu da mesma maneira apaixonada e confiante como começara:

– Chefe Guerreiro, sem esses novos Renegados, meu povo pereceria… Nosso controle sobre Guilnéas e o norte de Lordaeron seria perdido.

– Você já parou para pensar no que isso significa, Sylvana? – Garrosh berrava, transtornado. – Que diferença há entre você e o Lich Rei agora?

– Não é óbvio, Chefe Guerreiro? – ela deu um risinho satisfeito. – Eu sirvo à Horda.

– Veja lá como fala, sua vadia! – Garrosh ergueu o machado gigantesco que carregava na direção da Dama Sombria.

Epa. Halie percebeu que estava tão tensa quanto era possível. Deveria sair dali agora? Sair… correndo? Sentia que todos os que acompanhavam a cena estavam mais parados do que o normal, como se qualquer movimento pudesse estourar uma guerra. A situação fora tão delicada – e constrangedora – que, quando a discussão acabou, ninguém conseguia se olhar diretamente, como se fosse algum pecado pensar no ocorrido.

Antes de partir, no entanto, Garrosh deixou claro que a Rainha Banshee estava, a partir daquele momento, em observação. Se o relacionamento dos dois já não era tão promissor, o que havia agora era uma tensão quase palpável.

Mas e eu, o que estou fazendo aqui, afinal?

*Nota: confira a história completa de Lílian Voss aqui. Vale a pena. 😉